1Limite-se aos factos, menina.
Uma vez que eram três e meia da manhã numa terra do interior onde nunca antes tinha estado, o pedido era difícil de cumprir.
Teresa, 23 anos, orfã de mãe e de avó.
Arrastava de novo o olhar pelas paredes mais fatais das desgraça de estar viva e ser disso consciente.
A luz amarela de uma lâmpada de 40 watts.
A cadeira de madeira fraca como em casa da sua tia.
O falso pendor dos factos como em toda a sua vida.
Teresa. Pequena e anónima até para si mesma.
Estar vivo é um lugar comum. Algo que espanta e magoa.
Mas afinal, o que é que estava a fazer no parque a estas horas?
Estava sentada.
Pois, isso vimos nós. Mas à espera de quê?
De nada. Não é forçoso estarmos sempre à espera.
Se calhar é. Se calhar a resposta é essa e este homem de meia idade com ar de detective de um filme de 3º escalão traz a resposta para todas as suas perguntas.
Pois...
Pois...
E então? Já me posso ir embora?
Poder pode. Mas só há comboios a partir das seis e meia da manhã. Para onde é que a menina iria? E não pense em responder que para o parque. Olhe que a minha paciência também tem limites!
Reparou agora que há um rádio pequeno, mal sintonizado numa estação local.
Eu tenho emprego, num veterinário. Deixe-me ir para casa.
Eu sou bailarina e o meu homem bate-me à noite.
Eu sou um extra-terrestre e vim conquistar o vosso planeta.
Eu sou a Teresa. Deixe-me ir embora.
Oferece-me um café?
Sirva-se. Quer açucar?
Não, muito obrigada. Está bem assim. Sabe, a minha mãe morreu quando eu era miúda e o meu pai nunca mais quiz casar. Entretem-se a fazer moinhos de vento e bonecada de madeira para pôr no jardim.
Moinhos de vento de todas as cores. Flores alteradas, desbotadas pelo sol do mar, no meio dos cactos e de outras plantas que nunca vingam bem. Nunca tivemos jeito para a jardinagem, na família. Faz moinhos de vento, o meu pai. E é mecânico. A minha irmã mais nova vive com uma tia solteirona. Trata-a muito bem, a minha tia. E a mim também. Mas diz que saio à minha mãe. Está sempre a dizer que hei-de morrer nova.
A menina devia ir para casa.
O meu pai, desde a morte da minha mãe, nunca mais teve jeito para nós. Foi por isso que fomos para casa da tia, que era mesmo ao lado. Ao almoço, a minha irmã saía de casa com um prato coberto por um naperon de renda e ia levar-lhe.
Importa-se que fume?
Esteja à vontade.
Acredita em Deus?
Ó menina, essas conversas não são para a qui chamadas. E olhe que ainda não me disse o que estava a fazer no parque. A menina não é daqui, pois não? Como é que veio aqui parar?
De comboio.
Fazer o quê? Conhece cá alguém.
Não, não conheço. Não vim fazer nada. Cheguei cá de comboio. Comprei um bilhete.
Mas tem algum problema? O namorado zangou-se consigo?
Não tenho namorado. Tenho dois gatos.
Pois olhe que a sua história me parece um bocado mal contada. Acho melhor que a menina fique connosco até de manhã e eu mesmo a levo à estação e compro o seu bilhete. Para onde quer ir?
Lisboa.
É de lá?
Não. Vou para lá.
É preciso avisar alguém?
Não. Talvez o padeiro, para não deixar pão amanhã.
Era simpático, o polícia. E penso que já estava convencido de que eu não me encontrava no parque aquela hora por nenhum motivo ilícito. Só não me deixou ir embora por julgar que eu devia ser meio tola. De maneira que fiquei na esquadra até de manhã a fumar cigarros e a beber o café dos que estavam no turno da noite.
2Pronto, menina. Já se pode ir embora. Dando-me um instantinho também a levo à estação. Olhe, até prefiro. Não vá você perder-se outra vez! E sempre que passar cá pela terra não se esqueça de vir cumprimentar.
O comboio matinal flutua fantasmagórico por campos verdes de trigo jovem, por campos alagados de arroz, por pequenas vilas brancas e dormentes de sono. Campanários largos, onde dormem cães vadios e galos estridentes e trágicos. Sente-se quente, aconchegada pela luz ténue do dia sempre farto dos vagabundos. Pensa na avó e na terra molhada. No frio da terra por sobre os corpos dos mortos no Inverno. Pensa no silêncio da morte que é frio, por comparação ao silêncio dos vivos que queima quando não é desejado. Pensa que não vai para lado nenhum. Se não vai para lado nenhum, mais lhe vale ir para um sítio quente. E é aí que adormece.
3Ó Joaninha, vai-me apanhar a roupa, filha! Se chove torna-se a molhar tudo. Isto é que está um tempo! Não se sabe se vai chover ou fazer sol e o teu tio também nunca mais chega.
Joaninha voa, voa, que o teu pai foi a Lisboa... A roupa há-de cheirar-lhe sempre a saponária, que é como quem diz que há-de transportar sempre o fantasma da avó. Há-de para sempre trazer nos braços lençóis brancos e o corpo da avó.
E a irmã ao longe, a dormir em comboios perdidos nos trigais e na distância.
Do rádio da cozinha chega eterna e portuguesa a voz de Amália. E por cima, a voz da sua tia, e por cima, o cheiro do arroz de tomate, e por cima, o sol imenso...
Ó tia, leve-me hoje a ver o mar que tenho saudades da praia.
Então e se chove?
Pois não faz mal, molhamo-nos!
Não tens juízo nenhum, cachopa! Vamos sim, que o teu tio nos há-de levar.
"...
mas dessa noite o veneno, persiste em me envenenar,ao menos ouves o vento, ao menos ouves o mar..."
4"...
gritar quem pode salvar-me,do que está dentro de mim,gostava até de matar-me!..."
A distância a separar-nos do mundo é a soma dos nossos passos. Ai Teresa! Num comboio para Lisboa... um comboio é uma coisa a fugir, a fugir aos berros. A revolver na distância e no lodo. Eternamente para diante.